sábado, 5 de dezembro de 2009

Interpretações do Sagrado: uma breve discussão bibliográfica sobre religiões afro -brasileiras


por Cintia Raymundo (Cintia da Oxum)



As religiões ditas afro-brasileiras são vistas como lócus de resistência e resgate cultural da identidade negra remetendo, na concepção geral, a uma idéia de retorno á uma suposta África primitiva e mítica.O símbolo deste processo de busca e identificação sempre foram os candomblés nagôs baianos.

Os estudos sobre a religião começaram a serem abordadas em produções específicas na literatura brasileira no começo do século XX através do médico Raymundo Nina Rodrigues , do cronista João do Rio e de Manuel Querino. Rodrigues estudou a religião na Bahia nos primeiros anos daquele século.Suas principais obras intitulam-se “O animismo fetichista dos negros bahianos” (1900) e “Os africanos no Brasil” (1906). João do Rio se ateve ao Rio de Janeiro e em 1904 concluiu a obra “As religiões do Rio”. Manuel Querino foi um pioneiro na observação participativa. Os relatos deste autor em “Costumes africanos no Brasil” (1938) foram usados por inúmeros pesquisadores em posteriores estudos.

A partir daí as ditas religiões afro-brasileiras passaram a ser tema corrente de diversas publicações que se perpetuavam cada vez mais, apresentando múltiplas perspectivas.

A questão da “pureza africana” é um tema corrente nas abordagens dos autores que se prepuseram a dissertar sobre os cultos afro-brasileiros. As abordagens teóricas sobre o assunto apresentam perspectivas diversas, por vezes contrastantes. O conceito de “pureza africana” é concebido, na maioria dos estudos, como um conjunto de práticas ritualísticas e culturais supostamente primitivas que remetem a uma representação de África mítica e original conforme a concepção de “África Eterna” (Manning, 2000). Esta se torna referência para uma suposta raiz de origem onde as nações do candomblé direcionam e buscam construir analogicamente sua história. Os africanismos são então supervalorizados dando aos candomblés tradicionais uma polaridade positiva. Contrapondo a este pólo positivo, as práticas religiosas sincréticas como a macumba é percebida como degenerada e pobre miticamente e ritualmente. A umbanda e suas variações como o Omolocô são concebidos em muitos discursos como a polaridade negativa, pois representa para muitos autores a derrota do africanismo pela branquidade.

A idéia de "pureza africana” condicionou também o processo de hierarquização de cultos e etnias através do ideal de "pureza nagô".

Nos primeiros discursos esse ideal foi percebido sobre a perspectiva médica (Nina Rodrigues), progressista (João do Rio) e folclórica (Manuel Querino). A partir dos anos 30 a antropologia cultural ganha terreno e começa a se perceber a troca do enfoque dos estudos das raças pelo estudo das culturas. Melville Herksovits e Athur Ramos são autores desta nova perspectiva antropológica. Arthur Ramos destaca-se pelas suas abordagens sobre religiosidade sempre vinculadas aos processos históricos e sociais sem subordinação ás características biológicas. Todos estes autores defenderam um modelo hierárquico de cultos

A literatura sobre os cultos afro-brasileiros pode ser dividida em quatro

momentos: o primeiro momento seria a literatura médica representada por Nina Rodrigues, pelas crônicas de João do Rio e pelo trabalho pioneiro de observação participativa de Manuel Querino nos primeiros anos do século XX; o segundo momento seria representado por autores que realizaram a maioria de suas pesquisas nas décadas de 30 e 40 tais como Edison Carneiro, Arthur Ramos, Ruth Landes e outros.No terceiro momento teríamos autores que dialogaram mais intensamente com a África em suas pesquisas tais como Roger Bastide e Pierre Fatumbi Verger. O quarto momento é representado por autores que debatem a idéia de “pureza africana”, por aqueles que passam a estudar outros modelos de culto como a umbanda e por novos debates sobre tradições no candomblé jeje-nagô. Dentre estes autores estão Juana Elbein dos Santos, Vivaldo da Costa Lima, Beatriz Góis Dantas, Hélio Vianna, Rita Laura Segato, Lorand Matory, Peter Fry. Stefania Capone, Renato Ortiz, Georges Lapassade, Marco Aurélio Luz, Márcio Goldman, José Flávio Pessoa de Barros, Júlio Braga, Wagner Gonçalves, Reginaldo Prandi, Patrícia Birman, Marina Lina Trindade, Monique Augras, Yvonne Maggie entre outros. Neste grupo de autores há constantes questionamentos e debates com as teorias antigas e com as teorias do próprio grupo de autores.

O primeiro momento, como explicitado, pode ser representado por Raymundo Nina Rodrigues e João do Rio. Nina Rodrigues foi simpatizante do evolucionismo e das teorias raciais.Defendeu a idéia de hierarquia de raças.No começo do século XX, esteve na Bahia estudando o fenômeno do transe entre membros do candomblé. Nina foi o primeiro a hierarquizar os cultos, elegendo os cultos jeje-nagô como mais “puros” e complexos mitologicamente, portanto, mais legítimos enquanto os bantos seriam mais pobres mitologicamente e “impuros”. Em o Animismo Fetichista dos Negros Bahianos (1935) afirma:

“Para o negro creoulo e o mestiço que não receberam influência tão directa da educação de pais africanos que delles se foram segregando pela ignorância da língua e maior convivência com os outros elementos da população mesclada e heterogenea do estado, as praticas fetichistas e a mythologia africana vão degenerando da sua pureza primitiva, gradualmente sendo esquecidas e abastardadas, ao mesmo tempo que se transfere para os santo católicos a adoração fetichista de que eram objeto os orisás”. (cap.5,p.322)

Pode-se dizer que Nina Rodrigues foi o precursor da idéia do “mito da pureza africana”.Porém ele não protagonizou sozinho este acontecimento. Suas idéias foram muitas influenciadas pelo babalawo Martiniano do Bonfim[1]. Babalâo ou babalawo em iorubá que significa o pai do segredo. É o adivinho do jogo de Ifá, o mais tradicional sistema oracular africano. Os informantes, adeptos e conhecedores dos cultos que fornecem informações em troca de favores, assumem papel fundamental na construção destes discursos.

A obra “Religiões do Rio” foi realizada pelo célebre cronista João do Rio no começo do século XX na cidade carioca. João do Rio teve como cicerone o negro Antônio, um adepto da crença. Juntos visitaram os ditos feiticeiros da cidade. Analisando sacarsticamente, o autor possui uma visão sobre o mundo mediúnico como espaço de feitiço, onde predomina a marmotagem, a sacanagem e a exploração. Segundo o escritor, a elite está comprometida com este universo profano tratando-o como um “carinho de um negociante por uma amante atriz” (Rio, 1906:35).Essa metáfora é interessante para pensar a relação destas práticas com a sociedade mais ampla. Revela a sedução que atraem esses membros da elite a este universo paralelo e perigoso, onde o outro é classificado em categorias. João do Rio afirma que a sociedade vive na dependência do feitiço, ela alimenta a crença a recorrerem a seus efeitos mágicos.O espaço das práticas da macumba são pra o autor os espaços da criminalidade, os terreiros aparecem comparados a hospícios franceses e os sacerdotes como embromadores e enganadores que usam a ignorância e o desespero das pessoas para se darem bem.A visão do feitiço como atrativo remete a Nina Rodrigues que afirmou que o principal veículo de legitimação de poder do feiticeiro era o segredo e o temor do feitiço pela sociedade. João do Rio constrói uma obra que nos prende dentro de sua narrativa, permeada de conceitos negativos com as práticas religiosas em geral. Todavia percebe-se que a crítica do autor era mais para as pessoas do que com as práticas em si.A forma que as pessoas lidam com as práticas a levando a ser uma fonte de renda incomodava o cronista e o fez criticar os praticantes questionando seus valores morais através do que presenciou em companhia de Antônio.

O segundo momento é representado por autores como Édison Carneiro, Ruth Landes, Gilberto Freyre e Arthur Ramos. Esses autores perpetuaram a concepção de uma suposta existência de uma linhagem mais genuína de formas de cultos. As principais obras destes autores foram escritas nas décadas de 30 e 40.Gilberto Freyre publica “Casa Grande e Senzala” (1938) onde expõe sua visão romantizada da mestiçagem. Athur Ramos publica “O negro brasileiro” (1934) e adere a corrente culturalista perpetuada por Melville Jean Herskovits que publica em 1937 o artigo intitulado “African gods and Catholic saints in New World religious belief” em uma publicação especializada em religião comparada. Édison Carneiro publicaria “Religiões Negras / Negros Bantos” (1936-37), “Os mitos africanos no Brasil” (1937) “Candomblés da Bahia” (1948) e serveria como cicerone de Ruth Landes em “A cidade das Mulheres” (1947), obra da autora realizada no final da década de 30.Época que Landes visita os principais terreiros da Bahia dentre eles o Gantois de Mãe Menininha da Oxum, o Bate – Folha de Joãozinho da Goméia e o terreiro da Casa Branca do Engenho Velho da ialorixá Tia Massi. Landes visita também Martiniano do Bonfim, que lhe revela sua ligação com Nina Rodrigues e permite perceber as convergências das idéias do babalawo com a do médico maranhense.

O terceiro momento é representado em sua maioria por intelectuais franceses como Pierre Verger e Roger Bastide Ambos eram ligados ao terreiro de candomblé Ilê Axé Opô Afonjá e filhos espirituais de Mãe Senhora de Oxum (Maria Bibiana do Espírito Santo).Nota-se nos discursos destes também uma supervalorização do modelo jejes-nagô de culto. Porém há preocupação em realizar comparações entre as formas de cultos no Brasil e na África. Entre as obras destacam-se “Orixás na África e no Novo Mundo” e “Notas sobre orixás e voduns na África e no Brasil” de Pierre Verger e “As religiões africanas no Brasil”, “Candomblés da Bahia” e a “Macumba Paulista” de Roger Bastide. Todas elas, exceto “A Macumba Paulista”, buscam ressaltar as semelhanças entre as formas de cultos em África e no Brasil. “A Macumba Paulista” é uma amostra da concepção bastideana sobre os cultos de origem banto. Para o autor a macumba e todas suas derivadas contrapõem aos candomblés nagô pela sua degeneração, pela presença substancial dos brancos ,principalmente dos imigrantes ,que trazem a lógica capitalista para dentro do culto e tentam ganhar dinheiro com as práticas mágicas manchando a imagem de uma crença, que segundo ele, já é fraca miticamente e que favorece as individualidades em contraposição dos candomblés nagôs onde as famílias de santos são mantidas por laços de coletividade. O candomblé dito tradicional para Bastide é fruto da resistência do negro e por isso deve ser ressaltado e preservado.

Os deuses “sobem” ao mesmo tempo que seus fiéis .Mas aí, enquanto sobem, se desnaturam.É o estudo que concluímos das representações coletivas , deixa transparecer uma certa ambivalência de sentimentos entre a fidelidade à África e sua atraição, pois para “subir”, os orixás são obrigados a se branquear.[2]

O quarto momento há autores que realizaram e publicaram pesquisas mais recentemente. Muitos questionam a concepção de “pureza africana” a concebendo ora como construção de intelectuais vinculados a contextos históricos ora como construção da própria comunidade de santo com fins políticos e econômicos. Da primeira idéia temos como representante Beatriz Góis Dantas. . As perspectivas que atenta para as agências dos adeptos das seitas tem como representante J. Lorand Matory que defende que a atuação de informantes são cruciais para a permanência de um ideal de pureza.Matory estuda principalmente informantes e adeptos que viviam em contato transatlântico com a África tais como Martiniano do Bonfim e Felisberto Sowser, o Benzinho. Sem sair do questionamento a esta noção de pureza, há os autores que pesquisaram e construíram discursos sobre a Umbanda e seus diversos segmentos. Questionando a percepção depreciativa destes segmento de culto, autores como Georges Lapassade e Marco Aurélio Luz em “O segredo da macumba” começam a requerer legitimidade para este culto Há diversos autores que ,ao estudar a Umbanda, reproduziram antigas percepções baseadas em questões de raça tal como Renato Ortiz cujo título do seu livro sobre umbanda “A morte branca do feiticeiro negro” traz explicito esta abordagem.Segundo Ortiz, os cultos de matriz africanas tiveram que sofrer processos de “branquidade” como o sincretismo para serem desvinculados da categoria de baixo espiritismo.Há autores que se aventuraram em descobrir a umbanda vista de dentro, através de uma intensa observação participativa como Yvonne Maggie em “Guerra de Orixá”.Destaca também “Medo do Feitiço: poder e magia no Brasil” a qual Maggie realiza estudos de casos usando como fonte os inquéritos policiais sobre repressão às práticas de magia na Primeira República no Rio de Janeiro.Maggie atesta o imaginário de caráter marginal das seitas perante a sociedade tal como João do Rio descreve em sua obra.

Outros discursos contemporâneos enfocam temas específicos dentro da religião tais como sexualidade (Patrícia Birmam em “Fazendo estilo, criando gênero), identidades (Márcio Goldman em sua dissertação de mestrado” A possessão e a construção ritual da pessoa no candomblé”, Claude Lépine em” Contribuição ao estudo do sistema de classificação dos tipos psicológicos no candomblé ketu de Salvador “e Rita Segato em “Santos e Daimones “) ou legitimidade (Reginaldo Prandi em “Os candomblés de São Paulo” ).

Há autores que são simpatizantes do candomblé.Mais do que defender um tradicionalismo eles atuam como legitimadores da crença perante a sociedade a defendendo de ataques de outras religiões .Dentre destes autores estão Vagner Gonçalves da Silva, José Flávio Pessoa de Barros, Júlio Braga, Sérgio Ferreti e Mundicarmo Ferreti.

Stefania Capone, antropóloga francesa, em “A busca da África no candomblé: poder e tradição no Brasil” ( 2000 ) investiga as principais linhagens de cultos e defende que as delimitações entre os mesmos são fluídas e inconstantes. Explicita também, através de estudos de casos, os conflitos decorrentes de práticas de candomblé com práticas umbandistas. É pertinente e atual o conflito exposto sobre a aceitação ou a rejeição dos Exus de umbanda no candomblé.Além de uma longa pesquisa das linhagens de família de santo, ou seja, quem é filho de quem, Capone investiga as diferentes formas de cultos tanto no candomblé quanto na umbanda, interpreta seu histórico e aponta suas continuidades e descontinuidades.

A natureza sempre esteve relacionada a questões de etnobotânica e de estruturação dos espaços sagrados .Os principais estudiosos sobre esta temática são Pierre Verger em Ewé: Uso de Plantas na Sociedade Iorubá”; José Flávio Pessoa de Barros em O segredo das folhas: sistema de classificação de vegetais no Candomblé jêje-nagô do Brasil e Ewe Orisa: uso liturgico e terapêutico dos vegetais nas casas de candomblé Jeje-Nagô ; Raul Lody em “7 folhas de defesa: ecologia, magia e cotidiano” e “Árvores Sagradas : etnografia e ecologia no candomblé, no Xangô e no Mina Jeje- Nagô” capítulos do seu livro Povo de Santo ; Oderp Serra em A Etnobotânica do Candomblé Nagô da Bahia : cosmologia e estrutura básica do arranjo taxinômico e Ângela Lühning em Ewé: as plantas brasileiras e seus parentes africanos.Esse trabalho possuiu significativa importância para esta pesquisa.

Toda casa de candomblé possui sua cumieera, centro de axé principal , local fundamental de referência sagrada ,normalmente, caracterizado como uma haste central no salão principal do terreiro dedicada ao Orixá Xangô ou ao Orixá patrono da casa.Afirma o povo de santo que a cumieera é a ligação maior com a África e remota a história da árvore do esquecimento

Neste lugar se encontrava a árvore do esquecimento. Os escravos homens deviam dar nove voltas em torno dela. As mulheres sete voltas. Depois disso supunha-se que os escravos perdiam a memória e esqueciam completamente seu passado, suas origens e sua identidade cultural, para se tornarem seres sem nenhuma vontade de reagir ou de se rebelar [3]

É a partir das árvores, símbolo máximo de ligação com o sagrado, que começa a desvelar os caminhos sinuosos desta pesquisa.



[1] LANDES, Ruth. A cidade das mulheres. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967.Nesta obra,Ruth Landes reproduz uma conversa que teve com Martiniano do Bonfim onde este afirma ter sido o informante de Nina Rodrigues.

[2] BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil ,vol.2, São Paulo, Pioneira, 1971,pg.456.

[3] Documentário Atlântico Negro - Na Rota dos Orixás ,1998

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